O som naquela sala evocava a Belle Époque. As cortinas de cetim vermelho e o cheiro a cigarrilhas, lembravam o ambiente boémio. As missangas e lantejoulas, os smokings e a brilhantina, as plumas, as rendas, tornavam distinto o aroma a noite parisiense nos idos anos 20. Ela envergava um simples vestido de cetim preto, meia liga da mesma cor, sapatos de salto moderadamente alto, luvas pelo cotovelo e uma expressão nostálgica preenchia-lhe o rosto. Pérolas brancas enfeitavam-lhe o pescoço desnudo, pérolas que rodopiava na ponta dos dedos enquanto se deliciava com uma flute de champanhe. Sentada a uma mesa, pouco iluminada, dispunha apenas de uma vela em cima da mesa. Um candelabro cor de prata, de pé alto, que reflectia a chama da vela e lhe enviava os pensamentos para longe dali. Aquela noite, era a sua noite. Tinha conquistado, num casamento onde se embrenhava diariamente e lhe sufocava a alegria, o direito a uma noite sozinha por semana. Longe de um marido que ainda amava mas de cuja relação a paixão tinha escapado há muito e onde a rotina e marasmo se tinha instalado. Longe de uma profissão dolorosa e arriscada. Longe de uma casa onde as tarefas domésticas eram a sua prisão. Uma vez por semana, num ritual só seu, Anne Marie sentava-se ao toucador do seu quarto. Por entre sombras de olhos, brilhos de lábios, pó de arroz, blush, bijuteria e perfumes, deleitava-se durante pelo menos uma hora a arranjar-se. Tempo precioso que a recordavam do tempo em que tinha tempo. Do tempo em que se cuidava e se sentia mulher. Antes de sair de casa, salpicava umas gotas de perfume por trás da orelha e nos pulsos. O cliché era evidente mas Chanel n.º 5 era o eleito para a sua noite e deixava um rasto da fragrância adocicada pairando no ar enquanto beijava na testa o marido, sentado no sofá assistindo a mais um documentário. Já perto da porta, conferia dentro da sua pequena mala se levava tudo o que precisava. Chaves de casa, dinheiro, baton, cigarros, documentos. A mala, uma pequena clutch cravada de brilhantes prateados, não lhe permitia levar mais que o essencial mas a ocasião assim o impunha. Contrastava de forma radical com a sua bolsa de dia-a-dia. Nessa, populada de objectos, abundavam aparentes inutilidades mas que para ela se assemelhava a uma cartola de mágico. Naquela noite, Anne Marie, escolheu a sensualidade em detrimento do pragmatismo. Sentia-se despida mas necessitada de soltar as amarras do mundo metódico em que se via afogada durante a sua vida dita real. Saiu sem peso na consciência e certa de que precisava daquela noite para se sentir mulher. Para se sentir plena consigo mesma. Saiu, batendo a porta ao de leve e forçando um sorriso no rosto aprimorado pela maquilhagem. Sozinha. Dirigiu-se ao Moulin Rouge. Outro cliché ao qual já se tinha acostumado e do qual tinha há muito decidido não abdicar. Ensimesmada, partilhava com a sua consciência os pensamentos que não se permitia ter noutras ocasiões. Por não conseguir desprender-se da sua profissão e da sua casa e do seu casamento. Ali, sozinha, o peso que habitualmente carregava nos ombros, parecia sumir-se por artes de magia mas mantinha a tristeza no olhar. Ouvia descansadamente “Sous le ciel de Paris” de Juliette Gréco quando a viu chegar. Deslumbrante, enérgica, bela, sorridente, confiante, atraente, magnética. Cabeças giravam à sua passagem, ninguém lhe era indiferente. Ria em gargalhadas sonoras com o público que se arrastava nas malhas da sua beleza, atraídos, hipnotizados. Observou-a de longe, invejou-lhe a atenção que lhe disponibilizavam. Por isso se surpreendeu quando a viu levitar na sua direcção e pedir licença para se sentar. Acedeu timidamente, sem perceber o que esperar. Cordial primeiro, amigável depois, a conversa fluiu e os olhares intensificaram-se. Sentia-se tonta, incrédula com a promiscuidade dos seus pensamentos, com receio de ver volúpia onde não existia. A sua voz, agora doce, parecia sibilar sons de desejo em conversas banais, parecia incendiar-lhe a mente com imagens que nunca pensou conseguir pensar. Olhou para o relógio. Queria que o tempo parasse e lhe desse tempo de descobrir mais sobre os limites que sabia agora querer ultrapassar. "Sim, também acho que está na hora", sorriu-lhe e pegou-lhe na mão, intimando-a a segui-la. Quando se apercebeu, estava no lobby a levantar uma chave de um quarto de hotel e a subir num elevador envidraçado. Envergava um sorriso ténue, nervoso e não esperava ser tomada de assalto como foi. O beijo que lhe tomou o fôlego, as mãos que lhe acariciaram as curvas, o trincar libidinoso do lóbulo da orelha, confirmaram o que lhe havia visto no olhar. A penthouse esperava-as. Sombria, deixava entrar pelas vidraças gigantes as luzes da noite, as luzes da cidade, as luzes embaciadas e serpenteantes que criavam sombras ao seu redor. Nervosa, limitava-se a seguir os passos dela, retribuindo na mesma medida as carícias, o toque, o olhar. Deu por si sentada na beira da cama. Ela ajoelhou-se-lhe aos pés e em movimentos lânguidos e sensuais, começou a despir-lhe a roupa. Cada peça, cada adereço, cada réstia do que lhe cobria a pele, abandonava-a agora, lenta e arrepiadamente. Entregou-lhe o corpo para seu usufruto mal sabendo que seria também ela a usufruir do prazer de ser tocada, admirada, de sentir na ponta dos dedos uma pele macia, uns seios firmes, uma boca ávida, uma língua sequiosa. Deitada na cama, jazendo inerte, cansada, fitou o tecto. Viu, como que de passagem, um sorriso desenhar-se nas sombras que vinham da rua. Sorriu de volta. Recolheu os seus pertences e saiu. Calçou os sapatos à porta, chamou o elevador e ajeitou a maquilhagem na face espelhada da porta. Indagou-se se na próxima semana a encontraria de novo. Chegou à conclusão que não importava.
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Raconte-Moi Une Histoire
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Raconte-Moi Une Histoire
Posted by Unknown
Posted on 1:45:00 AM
O som naquela sala evocava a Belle Époque. As cortinas de cetim vermelho e o cheiro a cigarrilhas, lembravam o ambiente boémio. As missangas e lantejoulas, os smokings e a brilhantina, as plumas, as rendas, tornavam distinto o aroma a noite parisiense nos idos anos 20. Ela envergava um simples vestido de cetim preto, meia liga da mesma cor, sapatos de salto moderadamente alto, luvas pelo cotovelo e uma expressão nostálgica preenchia-lhe o rosto. Pérolas brancas enfeitavam-lhe o pescoço desnudo, pérolas que rodopiava na ponta dos dedos enquanto se deliciava com uma flute de champanhe. Sentada a uma mesa, pouco iluminada, dispunha apenas de uma vela em cima da mesa. Um candelabro cor de prata, de pé alto, que reflectia a chama da vela e lhe enviava os pensamentos para longe dali. Aquela noite, era a sua noite. Tinha conquistado, num casamento onde se embrenhava diariamente e lhe sufocava a alegria, o direito a uma noite sozinha por semana. Longe de um marido que ainda amava mas de cuja relação a paixão tinha escapado há muito e onde a rotina e marasmo se tinha instalado. Longe de uma profissão dolorosa e arriscada. Longe de uma casa onde as tarefas domésticas eram a sua prisão. Uma vez por semana, num ritual só seu, Anne Marie sentava-se ao toucador do seu quarto. Por entre sombras de olhos, brilhos de lábios, pó de arroz, blush, bijuteria e perfumes, deleitava-se durante pelo menos uma hora a arranjar-se. Tempo precioso que a recordavam do tempo em que tinha tempo. Do tempo em que se cuidava e se sentia mulher. Antes de sair de casa, salpicava umas gotas de perfume por trás da orelha e nos pulsos. O cliché era evidente mas Chanel n.º 5 era o eleito para a sua noite e deixava um rasto da fragrância adocicada pairando no ar enquanto beijava na testa o marido, sentado no sofá assistindo a mais um documentário. Já perto da porta, conferia dentro da sua pequena mala se levava tudo o que precisava. Chaves de casa, dinheiro, baton, cigarros, documentos. A mala, uma pequena clutch cravada de brilhantes prateados, não lhe permitia levar mais que o essencial mas a ocasião assim o impunha. Contrastava de forma radical com a sua bolsa de dia-a-dia. Nessa, populada de objectos, abundavam aparentes inutilidades mas que para ela se assemelhava a uma cartola de mágico. Naquela noite, Anne Marie, escolheu a sensualidade em detrimento do pragmatismo. Sentia-se despida mas necessitada de soltar as amarras do mundo metódico em que se via afogada durante a sua vida dita real. Saiu sem peso na consciência e certa de que precisava daquela noite para se sentir mulher. Para se sentir plena consigo mesma. Saiu, batendo a porta ao de leve e forçando um sorriso no rosto aprimorado pela maquilhagem. Sozinha. Dirigiu-se ao Moulin Rouge. Outro cliché ao qual já se tinha acostumado e do qual tinha há muito decidido não abdicar. Ensimesmada, partilhava com a sua consciência os pensamentos que não se permitia ter noutras ocasiões. Por não conseguir desprender-se da sua profissão e da sua casa e do seu casamento. Ali, sozinha, o peso que habitualmente carregava nos ombros, parecia sumir-se por artes de magia mas mantinha a tristeza no olhar. Ouvia descansadamente “Sous le ciel de Paris” de Juliette Gréco quando a viu chegar. Deslumbrante, enérgica, bela, sorridente, confiante, atraente, magnética. Cabeças giravam à sua passagem, ninguém lhe era indiferente. Ria em gargalhadas sonoras com o público que se arrastava nas malhas da sua beleza, atraídos, hipnotizados. Observou-a de longe, invejou-lhe a atenção que lhe disponibilizavam. Por isso se surpreendeu quando a viu levitar na sua direcção e pedir licença para se sentar. Acedeu timidamente, sem perceber o que esperar. Cordial primeiro, amigável depois, a conversa fluiu e os olhares intensificaram-se. Sentia-se tonta, incrédula com a promiscuidade dos seus pensamentos, com receio de ver volúpia onde não existia. A sua voz, agora doce, parecia sibilar sons de desejo em conversas banais, parecia incendiar-lhe a mente com imagens que nunca pensou conseguir pensar. Olhou para o relógio. Queria que o tempo parasse e lhe desse tempo de descobrir mais sobre os limites que sabia agora querer ultrapassar. "Sim, também acho que está na hora", sorriu-lhe e pegou-lhe na mão, intimando-a a segui-la. Quando se apercebeu, estava no lobby a levantar uma chave de um quarto de hotel e a subir num elevador envidraçado. Envergava um sorriso ténue, nervoso e não esperava ser tomada de assalto como foi. O beijo que lhe tomou o fôlego, as mãos que lhe acariciaram as curvas, o trincar libidinoso do lóbulo da orelha, confirmaram o que lhe havia visto no olhar. A penthouse esperava-as. Sombria, deixava entrar pelas vidraças gigantes as luzes da noite, as luzes da cidade, as luzes embaciadas e serpenteantes que criavam sombras ao seu redor. Nervosa, limitava-se a seguir os passos dela, retribuindo na mesma medida as carícias, o toque, o olhar. Deu por si sentada na beira da cama. Ela ajoelhou-se-lhe aos pés e em movimentos lânguidos e sensuais, começou a despir-lhe a roupa. Cada peça, cada adereço, cada réstia do que lhe cobria a pele, abandonava-a agora, lenta e arrepiadamente. Entregou-lhe o corpo para seu usufruto mal sabendo que seria também ela a usufruir do prazer de ser tocada, admirada, de sentir na ponta dos dedos uma pele macia, uns seios firmes, uma boca ávida, uma língua sequiosa. Deitada na cama, jazendo inerte, cansada, fitou o tecto. Viu, como que de passagem, um sorriso desenhar-se nas sombras que vinham da rua. Sorriu de volta. Recolheu os seus pertences e saiu. Calçou os sapatos à porta, chamou o elevador e ajeitou a maquilhagem na face espelhada da porta. Indagou-se se na próxima semana a encontraria de novo. Chegou à conclusão que não importava.