Conheceram-se no meio de livros. Páginas poeirentas e marcadas pelo desgaste, pelo virar de dedos imundos da saliva cuidadosamente lambida e pelas lágrimas vertidas em instantes de complacência. Por entre o espaço vazio deixado por um almanaque emprestado há dias, ela viu o seu vulto esguio e disforme. Espreitava calmamente a secção de pintura, gostava de Vermeer (havia qualquer coisa naquele brinco de pérola e naquele olhar ligeiramente inclinado que o fazia imaginar a história por detrás daquele olhar) e Dalí (admirava a sua desconstrução da realidade, o modo como desfigurava as formas, líquidas, lânguidas). Há muito tempo que não lia um livro, agora bastava-se em olhar imagens, em ver as histórias já reproduzidas e acabadas mas surpreendentemente não conseguia abandonar as catacumbas da livraria. Ler um livro, para si, era uma experiência que deveria ser partilhada, um fazer amor com as palavras, trocando ideias, comentando, ajuizando, lendo trechos em voz alta. E há muito tempo que não fazia amor assim.
Agradou-lhe a forma sofrida como ele perscrutava as páginas coloridas. Via-se que não estava feliz. Aliás, todo o seu semblante gritava sofrer, solidão. Já para não falar no desalinho do seu cabelo, nos sapatos por engraxar, na camisa por passar a ferro e o rasgo involuntário que sobressaía no joelho dos seus jeans. Aproximou-se dele. Era descarada. Sempre fora. Em criança chamavam-lhe Busy Bee porque passava a vida a rondar os outros, indagando, perguntando o porquê das coisas, querendo saber a explicação para tudo e espalhando o pólen da curiosidade no espírito dos que a rodeavam. Achou que ele era um caso digno de investigação. Aqueles olhos escondiam mais que uma desilusão. Plantou-se a seu lado, olhando descaradamente as páginas que ele virava como quem vai no comboio em direcção ao trabalho e espreita o jornal do vizinho do lado para ler as novas do dia. Mas, ao invés de o fazer silenciosamente, encetou diálogo com o seu sorumbático interlocutor. "Se gostas de Vermeer, vais adorar saber que eu detenho o original deste quadro guardado lá em casa. Mas shhhhh, é segredo!" Piscou o olho, em sinal de brincadeira, esperando resposta. Dali a estarem a partilhar um café, foram breves instantes. Ela falava sem cessar numa verborreia que lhe era intrínseca, ele ouvia-a atentamente, esboçando tímidos sorrisos sempre que a sua boca desenhava um trejeito que lhe era próprio e ele guardava na retina da sua memória. Repetiram o café os restantes dias da semana. Falavam de livros, das artes, de sabores, de aromas, da vida. E o sorriso débil em breve se transformou em gargalhadas sonoras, em deliciosas tertúlias de saber. Um dia, ela roubou-lhe um beijo. Por entre folhas do jornal que lia pacientemente, selaram-se destinos num colar de lábios tão ameninado como os primeiros beijos da primária.
Conheceram-se no meio de livros. E era no meio deles que faziam amor. Amor com as palavras, amor com os corpos. Imbuíam-se das palavras e liam um para o outro. Contando histórias, vivendo ilusões, imaginando cenários. Interrompiam-se amiúde, desconcentravam-se. Uniam os corpos em abraços de paixão e retomavam mais tarde, depois de cansados os corpos, de fracturado o desejo. Dizia quem os via que haviam sido feitos um para o outro e que o seu amor resistiria a todas as intempéries. Eles sorriam e diziam que o seu amor era tão resistente quanto as folhas de papiro, essas andam cá há milhares de anos.